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O Brasil na década de 1980 vivia um clima de efervescência democrática criado pelo movimento das Diretas Já e amplificado pelo final de uma longa e truculenta ditadura militar. Paradoxalmente, ali também se iniciava a epidemia de HIV/Aids, que mais tarde viria a se tornar uma das mais letais da história recente do país e do mundo.

Enquanto muitos compositores e intérpretes se dedicaram a produzir um extenso acervo de música brasileira abordando a redemocratização, foram apenas alguns os que perceberam a importância daquela epidemia incipiente para a humanidade e escolheram abordar o tema em suas canções.


Rita Lee inegavelmente pertenceu a esse seleto grupo de artistas, abordando com sensibilidade o tema HIV/Aids não apenas em uma, mas em duas músicas de sua carreira.


A primeira delas, “Vírus do Amor”, foi composta em 1986, após a identificação do HIV como vírus causador da Aids. Numa época em que não havia sequer um tratamento disponível para a doença, Rita Lee e Roberto de Carvalho com sua letra subvertem os conceitos vigentes de pânico e de culpa associados à doença, humanizando a infecção e as pessoas que recebiam esse diagnóstico.


Nos lembram que o afeto, o amor e o sexo, a principal via de transmissão do HIV, estão entre as coisas boas da vida e da humanidade.


Com a irreverência do jovem pop rock brasileiro, “Vírus do Amor” se contrapôs na época à abordagem moralista e discriminatória da epidemia de HIV/Aids e das sexualidades minoritárias.


Vírus do Amor

Rita Lee e Roberto de Carvalho

 

Aqui estamos nós

Turistas de guerra

Bizarros casais

Restos mortais do Ibirapuera

 

O vírus do amor

Dentro da gente

Beira o caos

42 graus de febre contente

 

Prisioneiros de um arranha-céu

Lá embaixo o mundo cruel é tão chatinho

 

Você é toda a minha munição

Não negue fogo pro meu coração

Machucadinho

Cambalache de paixão

 

Doze anos mais tarde, já em 1998, Rita Lee grava junto com o seu filho Beto Lee “O Gosto do Azedo”. Naquele momento, começavam a surgir os primeiros esquemas de tratamento antirretroviral capazes de controlar de forma eficaz a multiplicação do HIV e a progressão da doença para Aids. Tais medicamentos, apesar de muito esperado, tinham um perfil de efeitos colaterais que beiravam o intolerável.


Na letra dessa segunda canção, que já não mais se esquiva de enunciar diretamente o nome do vírus, fica evidente na mudança de tom que os 12 anos que haviam se passado tinham sido difíceis. Este foi, em todo o planeta, o período de maior disseminação do vírus, das mortes e da discriminação.


“O Gosto do Azedo” ganhou no ano do seu lançamento o Prêmio Sheila Cortopassi na categoria artística. Criado em homenagem à emblemática menina Sheila, de 5 anos, que em 1992 teve sua matrícula recusada em uma escola de São Paulo por viver com HIV, o prêmio era dado a todos que se destacavam na abordagem do HIV/Aids.


O Gosto do Azedo

Rita Lee e Beto Lee

 

Para o sangue, sou o veneno

Eu mato, eu como, eu dreno

Para o resto da vida, sou extremo

Sou o gosto do azedo

A explosão de um torpedo

Contaminação do medo

Eu guardo o seu segredo

 

Sou o HIV que você não vê

 

Você não me vê

Mas eu vejo você

Sou a ponta da agulha

Tanto bato até que você fura

É a minha a sua captura

Sou dupla persona

Seu estado de coma

Sou o caos, sou a zona

Seu nocaute na lona

 

Sou o HIV que você não vê

 

Você não me vê

Mas eu vejo você

Eu sou o livre-arbítrio

Sem causa com efeito

Sua força é meu grande defeito

Sou a dor da tortura

Uma nova ditadura

Terminal da loucura

Sou o vírus sem cura

 

Sou o HIV que você não vê

Você não me vê

Mas eu vejo você

 

Em sua carreira, Rita Lee soube tanto no tema HIV/Aids como em diversos outros, que como sociedade precisávamos falar de nossas dificuldades, ainda que esses fossem assuntos espinhosos. E o fez de forma especialmente sensível.


Rita Lee, com sua arte, seu estilo e sua coragem, fará falta.

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