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No final de 2010, com a publicação dos resultados do iPrEX, o primeiro grande estudo de Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP), o mundo passou a conhecer um novo e potente método de prevenção que iria revolucionar o controle da epidemia de HIV/Aids ao longo da década seguinte.

Neste ensaio clínico, homens gays e mulheres transexuais/travestis vulneráveis ao HIV receberam, além dos métodos de prevenção disponíveis na época (camisinha, aconselhamento e testagem), um comprimido por dia. Metade deles recebeu comprimidos com antirretrovirais e metade com placebo.

No braço dos comprimidos verdadeiros ocorreram 44% menos infecções por HIV. No entanto, considerando apenas os participantes com boa adesão aos comprimidos prescritos, a proteção contra o HIV subia para mais de 99%.

Naquele momento, as conclusões foram duas: a ciência tinha desenvolvido uma forma inovadora e eficaz de prevenção do HIV, mas que, assim como a camisinha, só funcionava para quem a utilizasse de maneira consistente.

A partir daí, os olhos se voltaram para as demais populações vulneráveis ao HIV. Será que, além de gays e trans femininas, a PrEP também poderia proteger homens e mulheres cisgênero heterossexuais de uma infecção por HIV?

Nos anos seguintes, em meio a uma grande expectativa, os primeiros resultados do uso da PrEP em mulheres cis foram um banho de água fria. Em dois ensaios clínicos (VOICE e Fem-PrEP), não houve menos infecções por HIV entre as mulheres que receberam antirretrovirais. E o motivo atribuído à essa falha foi a adesão aos comprimidos prescritos de PrEP.

Havendo diferenças corpóreas e hormonais que poderiam influenciar na distribuição da PrEP no corpo das mulheres cis, foi criado então a ideia de que as mulheres cis precisariam de uma adesão melhor à PrEP para obterem a mesma proteção contra o HIV que homens cis gays. Ou em outras palavras, poderiam deixar de tomar menos comprimidos.

A maré só começou a mudar para a população heterossexual anos mais tarde com a publicação de mais dois estudos que comprovaram nesse grupo a eficácia preventiva da PrEP contra o HIV (TDF2 e Partners PrEP).

De lá pra cá, a PrEP passou a ser recomendada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) e por diversos países como estratégia de prevenção ao HIV para qualquer pessoa, independente do seu gênero ou orientação sexual, mas é comum encontrarmos nos protocolos alguma nota se referindo ao conceito da maior adesão exigida para mulheres cis.

Recentemente pela primeira vez esse dogma foi questionado. Durante a última Conferência Mundial de HIV (CROI), realizada em fevereiro de 2023 em Seattle, nos Estados Unidos, a Dra Jeanne Marrazzo, da Universidade do Alabama, apresentou os resultados de uma análise da compilação dos dados de vida real de uma série de programas de implementação de PrEP para mulheres cisgênero na África do Sul, Quênia, Botswana, Uganda, Índia e Estados Unidos.

Na análise, forma incluídas 6.296 mulheres cis em PrEP, das quais para 2.955 se tinha informações sobre adesão aos comprimidos prescritos. Os resultados indicaram que durante o acompanhamento praticamente todas as infecções por HIV ocorreram entre as participantes que apresentaram adesão decrescente ao longo do tempo ou muito baixa desde o início do acompanhamento.

Por mais que esse estudo pareça nos trazer informações já conhecidas, ele é até hoje o primeiro argumento produzido para derrubar o conceito de que mulheres cis precisariam de adesão diferente à PrEP para estarem protegidas, sugerindo, portanto, que a adesão exigida deveria ser igual à dos homens gays.

O estudo apresenta como limitações o fato de agrupar dados de projetos heterogêneos e de contar com dados de adesão apenas de parte das participantes, mas ainda assim é uma evidência que aponta para uma direção mais otimista para o uso da PrEP por mulheres cis.

Por enquanto, nenhuma mudança pode ser proposta nas recomendações do uso de PrEP para a população cis feminina e cada pessoa deve continuar buscando os métodos de prevenção que consegue utilizar com boa adesão. Afinal, não importa qual o método de prevenção escolhido, mas ele só vai funcionar se for usado corretamente.

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