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A restrição a doadores de sangue ao longo da história ao redor do mundo parece uma daquelas séries com muitas temporadas. Uma história sem fim, muitas vezes desagradável. E nos EUA um novo capítulo está prestes a começar.

Essa história começa na década de 1980, com o surgimento da epidemia de HIV/Aids. Uma vez que lá nos Estados Unidos, assim como no Brasil, temos desde sempre uma maior concentração dos casos dessa infecção entre mulheres transexuais e homens gays e bissexuais, como medida de controle da transmissão do HIV por via transfusional, naquela época determinou-se que LGBTs seriam para o resto de suas vidas banidos dos hemocentros.

Depois de muito tempo e debate sobre o tema, a restrição se reduziu de “a vida toda” para o período de 12 meses, o que significa que um homem gay só poderia fazer uma doação de sangue depois de ter ficado por um ano de abstinência sexual. 

Foi então que, com a pandemia de Covid-19 e a baixa nos estoques de bolsas nos bancos de sangue, a restrição de 12 meses foi encolhida para apenas 3, mantendo, no entanto, como critério a sexualidade do doador.

Com início do governo Biden, uma série de ações visando a melhora da equidade e o combate à discriminação na sociedade norte-americana começaram a ser propostas. Na última semana, a agência regulatória FDA anunciou em suas redes sociais que chegou a hora de rever mais uma vez os critérios de seleção de doadores de sangue.

A proposta é estabelecer um roteiro de questionamentos que devem ser aplicados a todos os doadores, independente da sua sexualidade, com o objetivo de avaliar o risco de aquisição do HIV por via sexual.

Entre as perguntas sugeridas no rascunho do roteiro estão:

– Houve alguma nova parceria sexual ou teve mais de uma parceria sexual nos últimos 3 meses?

Se a resposta for sim, deve-se em seguida perguntar: 

– Houve a prática de sexo anal nesse período?

Sempre que a resposta for novamente afirmativa, o doador será dispensado.

Inclui-se também uma restrição de 3 meses à doação de sangue para indivíduos que usaram as Profilaxia Pré ou Pós-Infecção ao HIV (PrEP e PEP, respectivamente). Essa restrição se justifica nas recomendações devido ao possível retardo na positivação dos testes de HIV após uma soroconversão num usuário dessas profilaxias, sobretudo naqueles com adesão ruim aos comprimidos.

O roteiro encontra-se atualmente em período de consulta pública aceitando sugestões e comentários, mas já gerou uma calorosa discussão entre governo, ativistas e sociedade civil. 

De fato, a exclusão dos termos “gay” ou “bissexual” das restrições é um enorme avanço, afinal eles não são os únicos detentores de práticas sexuais com risco de transmissão do HIV. No entanto, a meu ver se o roteiro for aprovado, simplesmente vai haver um transplante do estigma do sexo entre homens para o sexo anal, quando na verdade o sexo vaginal também apresenta, apesar de mais baixo, possibilidade de transmissão.

No Brasil, essa mesma história tem alguns capítulos diferentes. Em 2020, quando estávamos na fase da exigência da abstinência de 1 ano para que homens gays pudessem fazer uma doação, houve um julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) que considerou inconstitucional uma restrição que se embasava na orientação sexual de um indivíduo.

O julgamento deu origem ao Projeto de Lei n° 2353/2021 do Senador Fabiano Contarato que proíbe a discriminação com base na orientação sexual de doadores de sangue. O projeto já aprovado no Senado Federal e encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados.

Além disso, a determinação do STF fez com que a ANVISA (Agência de Vigilância Sanitária) atualizasse em julho/2022 os critérios para doação de sangue, que agora além de retirar a restrição a LGBTs, incluiu:

– Inaptidão temporária (6 meses) à doação para qualquer pessoa que usou PrEP ou PEP; para qualquer pessoa que iniciou o relacionamento sexual com uma nova parceria; e para os indivíduos que tenham tido mais de 3 parcerias sexuais nos últimos 3 meses.

– Inaptidão temporária (12 meses) à doação para qualquer pessoa que tenha feito sexo com mais de uma parceria simultaneamente.

Resta saber o impacto dessas mudanças nos estoques de hemoderivados nos bancos de sangue.

Tanto EUA quando Brasil estão melhorando os seus critérios de restrição de doadores de sangue, mas vemos que ainda temos muito o que melhorar tanto nos argumentos quanto na forma de colocá-los em prática nos questionários. 

Pelo menos, nessa série já terminou a temporada em que os LGBTs eram um perigo iminente para a sociedade.

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