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Gonorreia super-resistente: um pouco da história e reflexão sobre o tema

Os seres humanos e a gonorreia têm uma longa história juntos. Uma vez que somos seu único hospedeiro e sendo ela uma das bactérias com maior transmissibilidade em uma relação sexual, provavelmente a gonorreia já circula entre nós desde que existe sexo, ou seja, desde sempre.

Os primeiros relatos históricos dessa relação de amor e ódio datam de carca de 3.500 anos atrás. A gonorreia passou pelas civilizações grega e romana, está presente na literatura judaica e da idade média, e chega aos tempos atuais como a segunda infecção sexualmente transmissível (IST) bacteriana mais frequente do mundo, perdendo apenas para a clamídia. 

Da mesma forma, existe uma longa história de abordagens terapêuticas para a Gonorreia, incluindo inicialmente queimaduras, emplastros e ervas, mas se revolucionando com o desenvolvimento de antibióticos a partir da primeira metade do século XX.

Se por um lado a chegada dos antibióticos inaugurou uma era de tratamento mais fácil da infecção, se iniciava ali também uma verdadeira guerra entre os seres humanos, com seus antibióticos, e a Gonorreia, com seus mecanismos de resistência aos antimicrobianos.

No pós-segunda guerra mundial, a alegria da possibilidade de tratamento da Gonorreia com a penicilina, durou pouco tempo. Logo descobrimos que essa bactéria não era hábil apenas na transmissão entre humanos, mas também na sua capacidade de encontrar formas de se tornar resistente aos antibióticos usados.

Em poucas décadas fomos perdendo sequencialmente as balas que tínhamos em nosso arsenal, reduzindo, portanto, o número de classes de antibióticos ainda ativas contra a bactéria. Depois da penicilina, perdemos as tetraciclinas, em seguida os macrolídeos e as quinolonas. 

No meio dessa sequência, nós humanos percebemos que guerra contra a Gonorreia daria mais trabalho do que poderíamos imaginar. Por isso, passamos a fazer um trabalho intensivo de vigilância das cepas bacterianas resistentes ao redor do planeta e a padronizar o tratamento a ser utilizado de acordo com o resultado dessa vigilância.

Diferentemente do que muitos imaginam, as bactérias não se tornam resistentes aos antibióticos espontaneamente, mas quando são expostas de forma inadequada a eles. Se o antibiótico certo é usado na dose certa e pelo tempo certo, essa bactéria morre, não havendo chances de surgimento de resistência.

Quando um determinado antibiótico é indiscriminadamente utilizado em uma comunidade, inadvertidamente expomos as bactérias ali existentes a essa droga. Isso possibilita a seleção de cepas resistentes. No caso da gonorreia, o que complica ainda mais o cenário são os casos de infecção sem qualquer sintoma e a sua eficiente transmissão por meio do sexo oral. 

Imaginem por exemplo um portador assintomático de Gonorreia que tem um resfriado e recebe, sem necessidade, um determinado antibiótico. Em 2 dias, já se sentindo melhor, interrompe precocemente o tratamento. Aqui, o uso inadequado do antibiótico poderia induzir a seleção de cepas resistentes dessa bactéria. 

Pensando nisso, já há bastante tempo duas ações são recomendadas: o uso racional de antibióticos, evitando a prescrição onde não são necessários, e o rastreamento de ISTs assintomáticas em pessoas com vida sexual ativa. No entanto, nenhuma das duas têm sido executadas de forma adequada.

Igualmente importante, o tratamento correto dos casos sintomáticos de Gonorreia é outro ponto frequente de falha. Apesar da recomendação oficial do Ministério da Saúde, baseada em estudos de vigilância de resistência, recomendar um determinado medicamento, ainda são frequentes as prescrições de esquemas terapêuticos errados.

Em outras palavras, quem está tornando a Gonorreia super-resistente são os médicos e não os pacientes.

O assunto veio à tona essa semana com o alerta nos Estados Unidos da identificação dos dois primeiros casos de Gonorreia com sensibilidade reduzida ao antibiótico atualmente recomendado como tratamento. Cepas semelhantes já haviam sido encontradas na Ásia e no Reino Unido.

Depois do alerta, já vejo mais uma vez uma reação equivocada sobre a questão. A mídia sensacionalista se aproveita do pânico usando o termo “Supergonorreia” e rapidamente surgem aqueles sempre em busca de argumentos para culpar a sexualidade das pessoas.

No meu entender, como exposto acima, a resistência da gonorreia está muito mais associada ao não cumprimento das recomendações do que ao sexo. Considero por isso muito mais producente usarmos o gancho da chegada às Américas desta cepa para lutarmos pela ampliação do acesso ao rastreamento de ISTs e pelo tratamento antibiótico correto dos casos diagnosticados.

Se quisermos o controle da gonorreia dependemos de empenho, pesquisa e investimento. Culpar o sexo é sempre o caminho mais fácil e menos eficiente.

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