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2023 começou com tudo. Com a troca de governo, recebemos avalanches diárias de novidades. Quem lê tanta notícia pode até se perder, por isso preciso chamar a sua atenção para uma que me deixou especialmente feliz: no dia 1º de janeiro, o decreto 11.358 recriou o Departamento de Vigilância de ISTs, Aids e Hepatites Virais. E nos próximos parágrafos pretendo convencer você de que esse é um grande motivo para se comemorar.

O Programa Brasileiro de HIV/Aids do Ministério da Saúde havia sido rebaixado e perdido o status de departamento em maio de 2019, sendo então acomodado em uma pasta de nome estranho, o Departamento de Doenças de Condições Crônicas. Esse departamento deveria ser responsável pelo cuidado de um grande balaio de doenças, que ia de hanseníase a parasitoses.

Com a sua volta para o que nunca deveria ter saído, o Departamento de HIV/Aids, que é uma verdadeira síntese da história da saúde pública brasileira, poderá retomar sua importância e protagonismo.

O programa brasileiro de HIV foi oficialmente criado em 1988, o ano da promulgação da constituição brasileira e, com ela, da criação do SUS (Sistema Único de Saúde). Esse programa foi o resultado de uma intensa mobilização social em todo Brasil iniciada alguns anos antes.

Tudo começou em São Paulo, no ano de 1983, apenas 1 ano depois da identificação do primeiro caso de infecção por HIV no país. A pressão da sociedade civil por um posicionamento governamental frente à epidemia que por aqui já se espalhava, fez nascer o que viria a se tornar posteriormente o programa estadual de HIV/Aids, o primeiro do país. Depois dele, todo o resto do país começou a se organizar em torno desse tema.

Essa participação social era um dos princípios do SUS previstos na constituição, mas certamente foi também um dos responsáveis pelo sucesso e articulação do programa brasileiro de HIV nos primeiros anos de enfrentamento da epidemia de HIV recém-chegada ao país.

Com a presença dos subgrupos populacionais mais acometidos nas tomadas de decisão da pasta, seja por meio dos conselhos de saúde ou pelo engajamento de ONGs, o tema HIV/Aids entrou na agenda do ministério da saúde e começou a receber a devida atenção.

Os resultados foram, entre outros, campanhas de comunicação elaboradas para serem mais educativas e menos estigmatizantes, e a criação de uma rede de serviços de saúde que prestavam atendimento às pessoas que viviam com HIV/Aids levando em consideração e valorizando as suas demandas.

Por não se tratar de uma questão unicamente da saúde, mas ter significativa intersecção com outras áreas, como por exemplo com a educação (educação em saúde nas escolas), a justiça (combate à homo, trans e sorofobia), a previdência (se não diagnosticada e tratada, pode causar doença incapacitante) e a imigração (crise de refugiados), o enfrentamento eficaz da epidemia de HIV/Aids requer um orçamento adequado, poder de decisão e boa articulação com outros ministérios e secretarias do governo.

Diminuir e esvaziar o Programa Brasileiro de HIV/Aids é jogar fora décadas de um trabalho construído a muitas mãos que por anos foi considerado um exemplo para os países em desenvolvimento. É desconsiderar a opinião da população brasileira sobre elementos que influenciam diretamente as suas vidas.

Valorizar esse programa, garantindo a ele financiamento próprio e a tecnologia necessária, é pavimentar o caminho para o sonhado controle do HIV/Aids no Brasil. E o controle de uma epidemia que acomete cerca de 1 milhão de brasileiros, tem incidência concentrada entre os mais jovens e que já provocou a morte de mais de 370.000 pessoas desde seu início da década de 1980, é de enorme importância para o futuro do país.

Não tenho nada contra a hanseníase ou as parasitoses, mas não é preciso ser especialista para perceber que a interação do HIV com a sociedade tem aspectos muito singulares, relacionados às suas vias de transmissão e ao potencial gerador de discriminação e estigma. Isso torna o seu controle completamente diferente do empregado em outras doenças infecciosas. Ignorar essas peculiaridades é sem dúvidas uma forma de fomentar a disseminação viral.

Para coroar a boa notícia da recriação do Departamento de HIV/Aids, o médico epidemiologista Fábio Mesquita, nome escolhido para comandá-lo, tem ampla experiência e um histórico profissional exemplar para a função. Ele dirigiu esse mesmo programa com excelentes resultados até o impeachment da presidenta Dilma Rousseff. As boas notícias para todos os brasileiros, tanto os que vivem quanto os que não vivem com HIV/Aids, devem ser celebradas. Bom trabalho para a gestão que se inicia, desejo sucesso no resgate dos princípios do SUS.

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