Quando se pensa na lista de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) que circulam pelo mundo, o senso comum não costuma dar muita importância para outros agentes além do HIV/Aids. No entanto, é a gonorreia que tem tirado o sono dos técnicos da OMS (Organização Mundial da Saúde).
No último século, a Neisseria gonorrhoeae, bactéria causadora da gonorreia, claramente se comportou de forma diferente das outras ISTs bacterianas, tais como a clamídia ou a sífilis.
Enquanto para as outras ISTs hoje podemos obter a cura com os mesmos antibióticos que usávamos no passado, ao longo das últimas décadas a gonorreia nos deu trabalho devido à sua excepcional capacidade de desenvolver mecanismos resistência aos medicamentos antibióticos.
No passado, por exemplo, a gonorreia podia ser tratada com sucesso utilizando-se um esquema simples como a penicilina em comprimidos. Com o passar dos anos, essa bactéria ficou resistente a todos os tratamentos utilizados e hoje dispomos para seu tratamento apenas de um antibiótico injetável chamado Ceftriaxona.
Reconhecendo a capacidade da gonorreia em selecionar mutações de resistência aos antimicrobianos e sabendo que a eficácia da Ceftriaxona provavelmente também terá duração limitada, um grupo de pesquisadores da OMS começou a buscar novas drogas como alternativas para o seu tratamento.
Com esse objetivo, foi então criado em 2018, na Suíça, o GARDP (Global Antibiotic Research & Development Partnership, que pode ser traduzido como Parceria Global para Desenvolvimento e Pesquisa de Antibióticos). Trata-se de uma organização sem fins lucrativos e financiada por países ricos como Alemanha, Reino Unido, Austrália, Japão e Holanda, que se propõe a desenvolver novos tratamentos antibióticos para bactérias que ameaçam a saúde global por estarem se tornando multirresistentes.
Normalmente, o processo de pesquisa e desenvolvimento de novos antibióticos envolve um tempo tão grande e um investimento tão alto que não atrai o interesse de laboratórios privados, sobretudo se existir a probabilidade da nova droga ser usada de fato por pouco tempo até a emergência de cepas bacterianas resistentes também a ela. Por causa disso, nas últimas décadas simplesmente não houve nenhuma pesquisa sobre novas drogas para o tratamento da gonorreia. Enquanto isso, houve o crescimento significativo do número de casos dessa IST.
Felizmente, com a criação do GARDP esse cenário começou a mudar. No final de 2023, foram anunciados os resultados preliminares do primeiro ensaio clínico randomizado conduzido pelo grupo testando um novo antibiótico em comprimidos chamado Zoliflodacina para tratamento de gonorreia geniturinária.
Entre os achados, foram encontradas com uma dose única de Zoliflodacina por via oral taxas de cura semelhantes àquelas com o tratamento injetável com Ceftriaxona usado atualmente. Além disso, por ser a Zoliflodacina a primeira droga da sua classe, não foram encontradas mutações de resistência cruzada com outros antibióticos já utilizados previamente.
Novos estudos com a Zoliflodacina são esperados para os próximos anos para se confirmar o sucesso obtido no primeiro ensaio clínico e comprovar a segurança do seu uso em diferentes tipos de infecção por gonorreia.
Por enquanto a Zoliflodacina ainda não foi aprovada para ser utilizada em nenhum país do mundo, mas os resultados anunciados trazem grande esperança tanto pela potencial nova alternativa de tratamento da gonorreia multirresistente, quanto pelo sucesso da iniciativa GARDP para o desenvolvimento de novas drogas dentro de uma área de pouco interesse econômico e comercial.
Ciência de qualidade e economicamente responsável é o tipo de movimento que tem o potencial de beneficiar toda a população mundial.
*Texto originalmente postado na seção VivaBem do UOL.