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Ronaldo Canabarro1

Introdução

As discussões acerca da sexualidade e da política, e de como essas se articulam, têm se intensificado nos dias atuais. Cada vez mais, ouve-se pelos meios de comunicação de massa, as assertivas de pronunciamentos políticos que envolvem a política da sexualidade, a jurisdição dos corpos, das práticas sexuais e o controle das experiências afetivo-sexuais. Nesse contexto, surge como forma de luta por direitos humanos, o denominado Movimento LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros.
Neste artigo, busco abordar, primeiramente, as discussões do direito sobre a sexualidade e a evolução dos direitos sexuais. Em seguida, faço uma breve constituição histórica desse movimento social, de forma a contextualizar seu surgimento, especialmente no Brasil. A seguir, faço uma breve definição histórica do termo cidadania, especificando suas construções teóricas a partir da História e do Direito. Por fim, apresento uma reflexão acerca das relações de poder e construção da cidadania a partir das interlocuções do poder local com os movimentos sociais, em especial o Movimento LGBT.

Breve história do movimento LGBT Brasileiro2

Para marcarmos o início da breve história do hoje chamado Movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), frequentemente recorre-se aos episódios ocorridos no Stonewall Inn, o famoso bar de Nova Iorque que, em 1969, foi

1 Formado em História – Licenciatura pela Universidade de Passo Fundo – UPF, especialista em Gestão Escolar pela Universidade Castelo Branco – UCB, mestrando em História Regional pela UPF.
2 Em capítulo do livro Filosofia e Homoafetividade (2012), este autor traça um breve histórico do movimento LGBT no âmbito mundial e brasileiro. O texto compõe o capítulo XI, intitulado “Por uma breve história do movimento LGBT: antecedentes, perspectivas e desafios de um movimento identitário numa época de estudos em pós-identidades” (p. 193-207).

palco da primeira revolta de pessoas por conta da forma como eram tratadas por policiais e autoridades, por serem identificadxs como desviantes das normas sociais. Sabe-se que esse fato é o início das Paradas do Orgulho Gay, que se espalharam pelo mundo afora. Os movimentos políticos que desejavam lutar contra a visão criminosa ou pecaminosa da homossexualidade remontam a décadas anteriores. Entre os exemplos, conforme já exposto anteriormente, está a retirada do parágrafo 175, na Alemanha, travada por Hirschfeld. Outro exemplo é o movimento homófilo, na Europa e Estados Unidos, que reunia intelectuais produtores de pesquisa sobre o tema.
No Brasil, a luta por direitos humanos de sexodiversos surge mais tarde que na América do Norte ou Europa. Ao iniciar a década de 80, o país passa por uma reabertura democrática, com a ditadura perdendo a sua força. Pouco a pouco, os movimentos democráticos vão (re)aparecendo, surgindo nesse período vários grupos do denominado movimento Gay3. Ainda em final da década de 70, são criadas interessantes movimentações como o Jornal Lampião da Esquina, em 1978 (FRY, 1993) que circulava na época falando de “coisas de bicha”, desafiando a censura e questionando a heteronormatividade compulsória.4
Na década de 80, eclode a epidemia de SIDA – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – ou AIDS, como comumente chamada na sigla em inglês. A imprensa batiza de “Peste Gay”, “Câncer Gay”5, e os grupos militantes se veem diante de uma situação inesperada. Antes, a luta era por liberdade, agora, ao ver tantxs amigxs militantes morrendo, torna-se uma luta pela vida. Muitxs desistem, como nos mostra Fry (1993), mas outrxs tantxs se mantém e se obrigam a dar uma resposta para a epidemia. Neste momento, instala-se algo que marca o Movimento LGBT: a parceria com o Estado, em especial, as áreas governamentais da Saúde (PARKER, 2000).
As ONGs LGBT que agora surgem deixam de ter o caráter de movimento social e passam a trabalhar em conjunto com o governo. Há uma divisão no Movimento

3 Durante muito tempo, o termo para se referir à militância LGBT ficava somente identificado como gay. O uso de letras representando identidades de gênero e orientações afetivo-sexuais só é discutido e assimilado mais tarde. No Brasil, em especial, passou o uso se deu após a 1ª Conferência Nacional GLBT, realizada em Brasília, no período de 5 e 8 de junho de 2008. Essa troca foi para que outras lutas pudessem ter visibilidade, como a das lésbicas, travestis e transexuais.
4 Termo surgido dentro da Teria Queer que tenta explicar como a heterossexualidade está inserida nas normas sociais em todos os níveis e como isso estabelece as relações de discurso, recurso e reflexão social.
5 Ver mais em GALVÃO, Jane. AIDS no Brasil: a agenda de construção de uma epidemia. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2000.

LGBT, onde de um lado há aqueles que consideram que o movimento social LGBT deve lutar em conjunto com outros movimentos e associações de defesa de direitos dxs trabalhadorxs, negrxs e mulheres, e de outro aqueles que dizem que a luta deveria ficar somente em garantir direitos para sexodiversos. (FACCHINI, 2005).
A persistência dos movimentos mundo afora para despatologizar identidades de gênero e orientações afetivo-sexuais se reflete em intenso trabalho de conscientização e resistência. Em nosso país, segundo Mott (2005, p. 100) em 1985, o Conselho Federal de Medicina retirou o homossexualidade da classificação de doenças: “essa campanha nacional teve o apoio de mais de 16 mil signatários, incluindo destacados intelectuais, políticos e artistas, antecipando, em cinco anos, resolução semelhante da Organização Mundial de Saúde (OMS)”. Em 1990, a Organização Mundial de Saúde retira de seus catálogos médicos (DSM – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais e CID – Código Internacional de Doenças), o homossexualismo (o sufixo ismo remete à doença), passando-se a denominar homossexualidade, como condição de ser e orientação individual do desejo. (ABGLT, 2013).
Nas décadas de 80 e 90, surgem vários grupos brasileiros com o mesmo intuito, atuando até hoje, como o GGB – Grupo Gay da Bahia, que surge em 1980, pioneiro na realização de pesquisas e estudos. Nesse mesmo ano, acontece o primeiro Encontro Brasileiro de Homossexuais, e no ano seguinte, a primeira comemoração do Dia do Orgulho Gay (28 de junho) (MOTT, 2005). Nascem filiais do Somos – Comunicação e Sexualidade, que se espalham pelo Brasil, em conjunto com novos grupos de travestis e transexuais.
Mott (2005) continua essa retrospectiva com destaque para o ano de 1986, quando os grupos Triângulo Rosa (Rio de Janeiro), Libertos (São Paulo) e Grupo Gay da Bahia iniciaram campanha entre os constituintes, para incluir a proibição de discriminação por orientação afetivo-sexual no texto constitucional, pleito não contemplado na versão final da Constituição, que ficou com a seguinte redação no Art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […]” (BRASIL, 2007).

A igualdade almejada pela Constituição foi regulamentada e implementada em 1989, pela Lei n.º 7.716, de 05 de janeiro de 1989, com a seguinte redação no Art. 1º: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” Não foram incluídos os termos “orientação sexual” e “identidade de gênero”, como se pretendia nos movimentos daquela década.
Em 1990, a partir de Salvador, 72 cidades brasileiras e três estados incluíram nas Leis Orgânicas municipais a proibição de discriminar por orientação afetivo-sexual. Porém, até onde se sabe, nenhuma punição foi aplicada. Mott (2005) destaca que, em 1995, quando é Fundada a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT) – que conta hoje com mais de 150 grupos filiados, sendo a maior entidade homossexual da América Latina –, é também apresentado o projeto de lei de Parceria Civil Registrada, iniciativa da deputada Marta Suplicy (PT/SP), até hoje sem ter sido votado. Por fim, em 1996 homossexuais são citadxs pela primeira vez num documento oficial do governo brasileiro, o Plano Nacional de Direitos Humanos, e incluídos entre os grupos sociais mais vulneráveis de nossa sociedade.
A primeira parada do Orgulho Gay ocorre em São Paulo, em 1997, reunindo em torno de duas mil pessoas. Hoje, a Parada Livre de São Paulo é a maior do mundo, tendo reunido no ano de 2012, segundo dados da organização, cerca de quatro milhões de pessoas. (NETTO, FRANÇA, FACCHINI, 2006).
Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia aprovou resolução proibindo terapias visando à “cura” de homossexuais6. Nos dias em que este texto estava sendo construído, a discussão da comunidade LGBT e apoiadores versava sobre o Projeto de Lei 234/2011 do deputado João Campos – PSDB, que visava sustar a redação dos seguintes parágrafo e artigo:

Parágrafo único – Os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.
Art. 4° – Os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.

6 Resolução n.º 1/99, de 23/03/1999, Conselho Federal de Psicologia

Nos anos 2000, o INSS concedeu o direito previdenciário de pensão a parceirxs gays por falecimento ou detenção. E em 2001, é Fundada a Articulação Nacional de Travestis (Antra). Em 2002, o Grupo Gay da Bahia lançou o Livro União Estável Homossexual, reconhecido pelo INSS como documento legal para comprovação de relações estáveis e recebimento de benefícios (MOTT, 2005).
Muitos avanços tornaram-se possíveis e foram conquistados ao longo dos anos de luta do Movimento LGBT Brasileiro. Poucos por vias do legislativo, uma vez que a força política de partidos financiados e ligados às igrejas, em especial as neopentecostais, ao que nos demonstra a conjuntura, é mais forte do que de partidários de causas humanistas e em prol dos direitos humanos. As conquistas têm vindo primeiramente pelo judiciário: exemplos são os anos de 2011, em que o STF – Supremo Tribunal Federal legislou sobre a União Estável homoafetiva, dando igualdade de direitos a famílias homoparentais e em 2013, o CNJ – Conselho Nacional de Justiça normatizou o casamento civil igualitário, ou o casamento homoafetivo, (termo cunhado pela ex-desembargadora Maria Berenice Dias), como tem sido chamado, de forma que todos os cartórios do Brasil estão impedidos de se recusarem a realizar o casamento civil entre pessoas de mesmo gênero. Embora se percebam os aparentes avanços, ainda há muito o que resistir e lutar dentro de um quadro recente de ameaças ou perdas efetivas de direitos já conquistados

O Conceito de cidadania enquanto processo de mudança histórica

Encontra-se o uso abundante da palavra cidadania em muitos documentos. Nos projetos pedagógicos das escolas se fala em “educar para a cidadania”. Nas universidades a formação perpassa nos projetos de futuros “profissionais cidadãos”. Nos documentos que tratam de direitos a adquirir, preservar ou manter para várias minorias sociais está impresso a ideia de cidadania, basta ver os documentos e conferências elaboradas pelo governo federal e estadual para promoção da cidadania LGBT7.

7 PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – Secretaria Especial dos Direitos Humanos – Texto-base da conferência nacional de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais – direitos humanos e políticas públicas: o caminho para garantir a cidadania de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Brasília: 2007; PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – Secretaria Especial dos Direitos Humanos – SEDH –

Observou-se que, em 45 páginas do Plano Nacional da Cidadania e Direitos Humanos LGBT, de 2009, a palavra/conceito cidadania aparece 41 vezes e as palavras/conceito direitos humanos aparecem 61 vezes. Ainda, nos documentos do VI Seminário pela cidadania LGBT de 2010, na Câmara dos Deputados, encontramos 96 repetições da palavra/conceito cidadania e 62 das palavras/conceito direitos humanos, num documento de 106 páginas. Por fim, no Texto-Base da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais – Direitos Humanos e Políticas Públicas, de 2008, aparece 38 vezes a palavra/conceito cidadania e 83 vezes as palavras/conceito direitos humanos. Mas até onde esse uso (excessivo talvez) tem clareza de seus próprios conceitos e intenções?
A palavra cidadania vem do grego civitas e designava os moradores da cidade- estado. Ser cidadão, nesse conceito básico, é ser aquele morador da cidade que faz parte da sua organização política e social, participando das decisões. Já na Roma Antiga, a palavra cidadania era usada para indicar a situação política de uma pessoa, os direitos que ela tinha ou podia exercer.
O início da ideia de cidadania se consolidou a partir das revoluções burguesas do século XVIII, quais sejam a Revolução Francesa e a Independência dos EUA, no início da chamada Idade Contemporânea, na qual surgiu um novo tipo de Estado para substituir as monarquias absolutistas, os Estados de Direito. Assim, diante da Constituição, todos têm direitos iguais perante à Lei. Nesse período, surgem nomes importantes como Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Adam Smith, teóricos do Iluminismo que traziam os ideários do liberalismo, da liberdade de expressão, da divisão dos poderes, do direito à representação política e da retomada da ideia de cidadania, como forma de representar e decidir os rumos do público de forma conjunta. Todos esses conceitos ainda hoje são tidos como responsáveis pela construção de uma democracia justa e cidadã.
Marshall (1967) sugere que haja uma divisão em três partes do conceito de cidadania, que, segundo ele, está mais ligado à história do que à lógica. Nesse caso, são os elementos civis, políticos e sociais que se referem ao conceito de cidadania.

Programa Brasil sem Homofobia – Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília: 2009; CÂMARA DOS DEPUTADOS – VI Seminário pela Cidadania LGBT – Centro de Documentação e Informação. Edições Câmara. Brasília: 2010.

Simplificando, o elemento civil está relacionado à liberdade individual, o político, ao direito de votar e ser votado e o social, ao acesso ao bem-estar econômico e serviços sociais oriundos do Estado.
Em se tratando do tema, Mott (2005) diz que se trava também uma luta por legitimar a diversidade, seu valor, o respeito à diferença, o convívio com as diferenças, a defesa das identidades sexuais e a preservação das particularidades culturais com igualdade de direitos sociais, políticos e econômicos.
Para Bobbio (2007), os direitos do homem, a democracia e a paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos não há democracia, sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. O autor ainda destaca que o conceito de cidadania não é algo estanque: para ele, essa ideia e esse direito à cidadania é temporal e recente. Basta ver que seu uso ainda está em construção, causando alguma confusão e, muitas vezes, usado sem a real reflexão sobre sua conceituação e intenção.
A história da cidadania no período contemporâneo confunde-se, muitas vezes, com a evolução dos direitos humanos. A conquista de direitos sociais, políticos e civis está em permanente construção e, embora esse conceito seja frequentemente utilizado por tantas e tantas pessoas, muitas vezes confundido com o direito de comprar ou consumir algo, ele é ainda pouco entendido pela maioria da população. Ser cidadão é ser consciente de sua necessária participação na vida pública, não necessariamente na participação partidária e de cargos, pois essa é só uma das maneiras de participação. É compreender que além dos deveres de manutenção do sistema, como impostos e tributos, somos parte integrante dessa engrenagem democrática.
Não somos cidadãos na plenitude da palavra se não participamos como controladores das ações daquelxs que elegemos. Quando nos eximimos do dever de cobrar e fiscalizar direitos sociais, mantemos a disparidade entre ricos e pobres. Desta forma, a cidadania acaba sendo representada por uma relação de compra e venda, quando quem não possui condições financeiras passa a usufruir de uma “cidadania possível”. Continuemos na extensão do debate, refletindo um pouco mais acerca de Direitos Humanos.

Os direitos humanos e sua evolução para inclusão dxs sexodiversos

Como foi possível acompanhar ao longo deste texto, a sexualidade, enquanto espaço de política e de direitos, faz-se e é feita em diversos âmbitos e por diversas técnicas discursivas. Seu processo de transformação, nos últimos dois séculos, é comentado por Francisco Fianco:

Sexualidade é o mecanismo cultural de produção de simbolizações positivas sobre o sexo, de regulamentação, um dispositivo histórico e produzido como mecanismo de saber e de poder capaz de integrar o sujeito e as diversas relações de micro-poder das quais ele participa. (2012, p. 90).

Para complementar sobre como essa atuação se deu ao longo do tempo, Fianco (2012, p. 90) a considera como “um discurso normativo, uma extensa classificação de perversões e desvios, e uma consequente caça a estas idiossincrasias na forma de condenação moral, diagnóstico como doença ou mesmo criminalização”.
No entanto essas mudanças nos discursos sobre a sexualidade tiveram evoluções e alterações no Direito. Invadiram as discussões sobre os direitos humanos e proporcionaram inúmeros debates, inclusive gerando legislações internacionais.
No Brasil, a legislação sobre as definições de como deveriam se comportar os corpos ficou ligada ao Direito de Família e só aparece na constituição de 1934. Conforme Ana Maria Louzada (2011), o casamento tornou-se indissociável nesta constituição, ressalvando somente os casos de desquite ou anulação. Importante destacar que a anulação era prevista somente para os casos em que o casamento não se consumava sexualmente, e o desquite era permitido somente por adultério, tentativa de morte, injúria grave ou abandono de lar por mais de dois anos (Art. 317, Código Civil, 1916). Embora o casamento terminasse, a sociedade conjugal não se dissolvia; não era possível casar outra vez.
Em 1930, quando da ascensão de Getúlio Vargas à Presidência da República, através da Revolução de 308, algumas mudanças nas relações de gênero começam a ser alteradas, em especial uma aprovação por parte do Presidente do voto feminino.

8 Ver mais em ARAUJO, Rita de Cássia Barbosa de. O voto de saias: a Constituinte de 1934 e a participação das mulheres na política. Estudos Avançados, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 133-150, dez. 2003.

Após o findar da 2ª Guerra Mundial, no ano de 1945, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é ratificada pelos países como estratégia de manutenção de uma unidade de paz e bem-estar, entendendo que o progresso da humanidade só se daria se mantivéssemos algumas premissas inerentes aos seres humanos em direitos fundamentais. O aprendizado do Holocausto e de toda uma era de guerras do século XX permitiu essa reflexão.
Para Bobbio (1992), a Declaração Universal dos Direitos do Homem representa uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro. Por conseguinte, na concepção do autor, os direitos humanos se consolidaram ao longo da história divididos em quatro gerações:
1ª Geração: Direitos Individuais – designam igualdade formal diante da Lei e apreciam o sujeito abstratamente;
2ª Geração: Direitos Coletivos – os direitos sociais, o sujeito de direito é visto no contexto social, em uma situação concreta;
3ª Geração: Direitos dos Povos ou os Direitos de Solidariedade: os direitos transindividuais, também chamados direitos coletivos e difusos. Basicamente compreendem os direitos do consumidor e os relacionados à questão da ecologia;
4ª Geração: Direitos de Manipulação Genética – relacionados à biotecnologia e bioengenharia. Questões sobre a vida e a morte e requerem uma discussão ética prévia, bioética. (BOBBIO, 1992).
A concepção de divisão dos Direitos Humanos em Bobbio está em contraposição à ideia de “direitos naturais”. O autor define como sendo direitos históricos, pois são construídos no processo histórico e na constante politização e conscientização. O que denota a importância dos movimentos sociais para construção e consolidação dos direitos humanos de forma ampla e universal.
Como marco de destaque na história dos direitos sexuais, os quais se enquadram como direitos humanos chamados de primeira geração, e levando em conta que o direito à própria identidade social e sexual ainda seja algo em construção, somente em 2006, através da reunião de especialistas realizada em Yogyakarta, Indonésia, entre 06 e 09 de novembro de 2006, passa-se a buscar em âmbito internacional o entendimento dos direitos de orientação afetivo-sexual e identidade de gênero como definidores de direitos humanos universais e plenos a todxs. Devendo os

países levar em consideração que “tendo todos nascidos livres e iguais”, estão estabelecidos 29 princípios, onde destacamos:

Estes princípios e recomendações refletem a aplicação da legislação de Direitos Humanos internacionais à vida e à experiência das pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero diversas e nenhum deles deve ser interpretado como restringindo, ou de qualquer forma limitando, os direitos e liberdades dessas pessoas, conforme reconhecidos em leis e padrões internacionais, regionais e nacionais. (ONU, 2006, p. 37)

Portanto, observa-se que a discussão se apresenta como “nova”, inclusive em nível internacional. Os avanços jurídicos em solo brasileiro têm causado impactos de relevância, pois mesmo antes dessa Carta, algumas ações jurídicas, através da jurisprudência criada, foram possíveis. Alerta-se ao fato de que essa convenção ainda não foi assinada e ratificada pelo Brasil.

Considerações finais ou que cidadania falta aos sexodiversos?

Segundo dados da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo – ILGA (2013), em sua terceira edição do relatório sobre a Homofobia do Estado, uma pesquisa desenvolvida por Daniel Otosson, os dados mundiais apresentam que dos 193 países que são membros da ONU a maioria não possui leis proibitivas com relação à homoafetividade. Em 78 deles ainda há legislação que criminaliza atos consensuais entre adultos do mesmo sexo. E em pouco mais de um terço deles, ou seja, sete, a homossexualidade ainda é criminalizada. As punições variam de um número de chibatadas (como o Irã), dois meses de prisão (Argélia) à sentença de prisão perpétua (Bangladesh) ou até mesmo à morte (Irã, Mauritânia, Arábia Saudita, Sudão, Iémen). Nestes países, pouco ou nada se avançou em termos de uma mudança de perspectiva acerca da homossexualidade. (ILGA, 2013).
A homotransfobia9 e suas nuances se apresentam de maneira intensa, ainda como elemento da cultura machista imposta. A heteronormatividade compulsória

9 Ao longo deste texto, utilizaremos o termo homotransfobia como sinônimo de LGBTfobias, pois compreendemos que haja tipificação e características peculiares relacionadas à violência empregada

permite, recria e até incentiva, muitas vezes, a prática da injúria homotransfóbica e atos de violência. Chamar um gay de “viado amaldiçoado”, ou uma lésbica de “sapata sem- vergonha”, não gera nenhum agravo passível de processo.
A injúria praticada nas ruas e espaços públicos faz com que muitxs, a grande maioria dos sexodiversos, sintam-se acuadxs e envergonhadxs de expor seu afeto, o que torna toda sua vivência invisível e não dizível. A legislação, não protegendo o cidadão, explicitamente gera, segundo Maria Berenice Dias, absoluta invisibilidade, que

[…] é totalmente perversa. Não existe forma pior de se discriminar alguém do que o condenar à invisibilidade, como está fazendo ainda o nosso legislador. Nós temos projetos de leis nesta Casa desde o ano de 1995 – o projeto de lei da Deputada Marta Suplicy. E nada. Temos o Projeto de Lei nº 122, de 2006, cuja Relatora é a Senadora Fátima Cleide. E nada. Temos agora um novo projeto, o Projeto de Lei nº 4.914, de 2009, para reconhecer a união estável. Ainda nada. Para que alguém tenha uma porta para bater, porque está sendo o Judiciário o caminho que está emprestando dignidade ao segmento homossexual deste País. (DIAS, Maria Berenice, 2010. p. 44. In: SEMINÁRIO pela Cidadania LGBT, 2010.)

O constrangimento com a manifestação da homossexualidade no mundo público, por si só, mostra que a luta pela emancipação dos direitos civis e sociais dxs sexodiversxs na sociedade brasileira traz à tona outra necessidade: a de se construírem novas estratégias e novos espaços que abram caminho à idéia de que todxs são iguais perante à Lei e diferentes diante da diversidade sexual. Nesse sentido, as associações, organizações e movimentos LGBT estão recriando o espaço público e novos caminhos para a sua emancipação como dirigentes democráticos de sua própria história. (MOTT, 2006).
Mas essa violência explícita é uma das formas de impedimentos do acesso à cidadania por parte de sexodiversos, pois a homotransfobia está imbricada nas normas jurídicas e sociais, que fazendo parte da heteronormatividade, não são pensadas no todo, e para todxs. Os avanços que tivemos em alguns âmbitos, como destaca Maria Berenice Dias,

contra diferentes categorias identitárias. São comuns no movimento os seguintes termos: homofobia, lesbofobia, bifobia, transfobia, travestifobia.

o direito à herança, o direito previdenciário, o direito de participar de planos de saúde, o direito de ser nomeado inventariante, […] direito a auxílios previdenciários, mediante portaria do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) baixada por determinação judicial, que vem sendo concedido até em sede administrativa. Mas todos esses avanços no âmbito da Justiça são vagarosos. E são vagarosos porque também batem muitas vezes na dificuldade de um Juiz em dar um passo além daquela costumeira cegueira da Justiça, que tem uma venda nos olhos. Precisamos mesmo é de leis. (DIAS, Maria Berenice, 2010. p. 44. In: SEMINÁRIO pela Cidadania LGBT, 2010.)

O grifo empregado na citação da ex-desembargadora salienta a forma como entendemos necessária essa positivação na Lei. Existe uma quantidade crescente de jurisprudência que ampara, porém também se perde muito quando os juízes podem decidir por outra interpretação. Um exemplo dessa falta de concordância harmônica é a de um juiz de Florianópolis que cancelou o casamento de um casal de mulheres por considerar inconstitucional, já que nossa constituição inclui para o casamento somente a possibilidade de se realizar entre um homem e uma mulher.10
Apesar dos entraves, o avanço de políticas públicas que visam a inserção de sexodiversos acontece. As bandeiras de luta do movimento, ao que nos parece, precisam receber destaque e a aprovação se faz necessária e urgente. Criminalizar a homotransfobia pode não ser a solução para os crimes e muito menos para o fim da discriminação que, nos parece, está no DNA cultural da nossa sociedade. Mas é uma ferramenta de conquista da dignidade e da segurança de seres humanos, que por demonstrarem sua afetividade ou por viverem sua identidade de gênero diferente da suposta determinação da biológica sofrem agressões e assassinatos todos os dias.
Permitir o casamento civil igualitário previsto em lei, com alteração da nossa constituição por parte do legislativo, não é somente querer enquadrar-se no sistema, mas permitir que pessoas tenham direitos civis junto com seu/sua esposx, sem distinção, se assim o quiserem. Realizar a inclusão nos censos demográficos de possíveis indicadores que permitam evidenciar aspectos da situação social e de vida da população LGBT é permitir dados concretos para a realização de políticas públicas efetivas e focadas na realidade.

10 Ver mais em: http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2013/08/casal-gay-entra-na-justica-apos- promotor-cancelar-casamento.html. Acesso em: 23/08/2013.

Incluir na pauta da saúde o processo transexualizador também para travestis, bem como ampliar a rede de atendimento e cirurgia transgenitalizadora para xs transexuais faz-se urgente enquanto um caso de saúde pública. Admitir que as pessoas têm o direito de escolher o seu nome para que esteja condizente com seu gênero social é permitir a autonomia do ser humano sobre sua vida e a maneira como quer ser chamadx/identificadx sem ser obrigadx a ter um laudo como doente. Trata-se de um princípio de dignidade humana.
Assumir uma formação de professores e de uma escola sem homotransfobia, além da inclusão nos currículos escolares de informações sobre o problema da discriminação na sociedade brasileira, e sobre o direito de todos os grupos e indivíduos a um tratamento igualitário perante a lei pensando numa escola realmente inclusiva e não discriminatória, onde a homolesbobitransfobia não ocorra, é o caminho para completar esse acesso indistinto x todxs de forma à completude da construção de cidadania.
Outra equação se apresenta como problema: a maioria das Organizações não Governamentais (ONGs) LGBT possui financiamento estatal, vinculando-as a essa política de negociação, pois é assim que sobrevivem. Assumem programas e ações que deveriam ser cobrados do poder público e acabam sendo um braço da ação institucional do governo. É preciso que o movimento social se repense independente e atuante na cobrança de políticas públicas, leis e ações que partam do poder público para atender a população LGBT como um todo.
Por fim, o movimento social de direitos humanos LGBT brasileiro apresenta um histórico de conquistas de relevância considerável, embora possamos considerá-las discutíveis em diversos âmbitos. Pensamos ser necessária a união com o movimento de Negras e Negros, com o Movimento de Mulheres, com os Sindicatos de Classes trabalhadorxs, com o Movimento pela Diversidade Funcional e todxs aqueles que lutam contra as opressões no dia-a-dia. A reflexão acerca das conquistas de direito não apagam sua importância na vida prática de sexodiversos brasileiros, mas abrem caminhos para a construir um movimento mais abrangente, no que se refere a categorias identitárias, mais eficazes, no que se refere à produção de leis que impeçam brechas hermenêuticas, e mais humana, no que se refere aos processos de despatologização de identidades de gênero e orientações afetivo-sexuais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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