O sonho de uma vacina que proteja contra todas as infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) não parece estar próximo de se tornar realidade.
Também não me parece realista um mundo em que as pessoas vão usar o preservativo em todas as suas relações sexuais, do início ao fim, incluindo o sexo oral.
Menos ainda é imaginável uma sociedade em que todos adotem a abstinência sexual como forma de controle da transmissão de sífilis, gonorreia e clamídia.
Aqui no mundo real, diante das curvas de incidência crescentes para ISTs bacterianas nas últimas décadas, os pesquisadores buscam maneiras de virar o jogo. Assim, inspirados no sucesso obtido para a redução dos casos de HIV com o uso de medicamentos antirretrovirais profiláticos (PrEP e PEP), se puseram a imaginar.
Poderia uma profilaxia com um antibiótico proteger um indivíduo contra ISTs bacterianas? E após alguns anos de pesquisa, resposta é sim.
O antibiótico escolhido para os testes foi a Doxiciclina. Quando tomado em dose única depois das exposições sexuais, na forma de profilaxia pós-exposição (DoxiPEP), em três diferentes estudos reduziu em torno de 80% as infecções por sífilis e clamídia. Para a gonorreia, a proteção foi menor, um pouco acima dos 50%.
Com os dados científicos acumulados até aqui é possível então afirmar de forma segura que a DoxiPEP, individualmente e em curto prazo, quando tomada com boa adesão é um bom método de prevenção contra ISTs bacterianas.
A notícia parece ótima, né? Mas os problemas aparecem já na etapa seguinte: o que vamos fazer com essa informação? Uma série de dúvidas ainda não respondidas faz com que tenhamos que ter cuidado com a recomendação maciça da DoxiPEP.
O receio é tanto de uma eventual seleção de bactérias resistentes a antibióticos entre aquelas causadoras de ISTs e nas da nossa flora bacteriana, quanto da perda da eficácia protetora com o tempo como decorrência disso.
Há também a dúvida de que, em populações diferentes de homens gays e mulheres trans, os grupos incluídos nos três estudos citados, a proteção seja menor. Até agora, um único estudo com essa intervenção foi realizado, no Quênia, com mulheres cisgênero. Como resultado, a DoxiPEP não conseguiu reduzir os casos de ISTs.
Definitivamente o uso disseminado da DoxiPEP nesse momento não é uma boa ideia. Mas um uso controlado, apenas por indivíduos mais vulneráveis a ISTs e que por isso teriam os maiores benefícios com poucos comprimidos tomados, pode ser uma boa alternativa para esse momento inicial.
Foi isso que um estudo publicado na última semana na conceituada revista científica Clinical Infectious Diseases resolveu investigar. Quais seriam os melhores critérios de indicação para uso da DoxiPEP, considerando a maior redução de incidência de ISTs com menor quantidade de antibiótico prescrita.
Para isso, os pesquisadores analisaram o banco de dados de uma grande clínica de saúde sexual em Boston, nos Estados Unidos. Lá, entre 2015 e 2020, mais de 10.000 pessoas foram atendidas para fazer seus exames periódicos de rastreamento de ISTs.
No estudo, foram feitas diversas simulações de indicações de uso de DoxiPEP e estimado o número de ISTs que seriam evitadas em cada uma delas. Na epidemiologia, dizemos que foi calculado o NNT (Número Necessário para Tratar), que consiste no número de pessoas que precisam receber uma determinada intervenção para que um evento não desejado seja evitado. Quanto menor o NNT, melhor o desempenho da intervenção.
Os menores NNTs encontrados no trabalho não foram associados ao uso contínuo da DoxiPEP, mas no uso intermitente, com duração de 1 ano, iniciada para os indivíduos que tinham ISTs diagnosticadas durante o seu acompanhamento.
Segundo os resultados, para cada 2 pessoas ou menos usando a DoxiPEP dessa maneira, ao fim de 1 ano era evitada 1 caso de IST. (NNT=2)
A publicação desse trabalho chega num momento em que queremos saber como a DoxiPEP poderia ser bem indicada e quando ela estaria sendo tomada à toa, apenas contribuindo com a seleção de bactérias resistentes no mundo.
Diversas localidades do planeta já estão usando a DoxiPEP de maneira oficial e controlada, coletando dados sobre resistência bacteriana. Logo essas dúvidas sobre o uso da DoxiPEP serão respondidas. Até lá, vamos assimilar o conhecimento que já está sendo produzido.
Assim, fica aqui o conselho da ciência: para pessoas que não tiveram ISTs no último ano, tomar a DoxiPEP não é uma boa ideia agora. E para você que já está tomando DoxiPEP por conta própria, considere fazer isso de forma intermitente, e não contínua.
Toda a comunidade científica agradece.